O espetáculo Ícaro do ator Luciano Mallmann propõem um mergulho profundo sobre a condição de pessoas cadeirantes que, por força de algum acidente, subitamente encontram-se em situação de limitação dos movimentos e enfrentam uma mudança completa nos hábitos rotineiros. Dirigido por Liane Venturella, que habilmente potencializa as histórias narradas com elegância e propriedade, o trabalho da dupla nos aproxima dos mistérios, tabus e preconceitos pertinentes às pessoas com deficiência física.
Num tom intimista e absolutamente sóbrio, aproveita o talento de Luciano para exprimir toda a dor e a delícia de ser o que é. Mostrado a seco e, sem apelação, o que se passa na vida privada dessas pessoas, conquista o público pela sua honestidade e simplicidade ao narrar os traumas, angústias, expectativas e frustrações de quem vive sem a completude do corpo. Com momentos divertidos e bem humorados, contrasta com os aspectos mais delicados e sombrios de quem precisa arrancar forças do espírito para enfrentar a nova etapa da vida.
Luciano narra a própria história pessoal, mas também dá voz a outros personagens igualmente interessantes e comoventes. Explica o que significa a lesão medular e os desdobramentos possíveis e diferentes de cada caso. A moça que nunca se deu bem com a mãe e que passa a depender, justamente, dela para seguir em frente, e entre tapas e beijos termina por encontrar um jeito menos desgastante de se relacionar com ela. O rapaz tetraplégico que se associa a uma instituição suíça que promove o suicídio assistido. A moça cadeirante que resolve engravidar. O rapaz lutador que se acha onipotente e tem dificuldade de aceitar a limitação imposta pelo novo corpo. Todos muito bem compostos e apresentados de maneira distinta pelo intérprete versátil e competente. Com recursos aparentemente limitados, Luciano constrói uma partitura bem urdida e detalhada para encarnar personagens cativantes que envolvem a todos com credibilidade e ternura. Um olhar franco, mas também generoso para com quem é desafiado diariamente para viver de forma limitada, do ponto de vista motor, mas que encontra novos significados e sentidos para viver e se descobrir produtivo e ativo nesta vida. Com iluminação precisa e uma trilha linda de Monica Tomasi, pontuando os momentos mais intensos, tudo conspira para focar a atenção sobre o ator que reina soberano sobre o palco. Assim como Ícaro, o herói da mitologia grega que desejava voar até o sol, mas terminou morrendo pela potência do calor do astro rei, Ícaro de Luciano, também toca na ferida aberta pela dor de lidar com um corpo diferente. Trata de mostrar esses renascimentos depois da queda. Ícaro, monólogo com texto de Luciano Mallmann, possui a chama da curiosidade e profundidade do ser humano, ávido por descobrir os próprios limites na superação diária dos obstáculos. Espetáculo imperdível e obrigatório para quem deseja um encontro verdadeiro entre si e o intérprete.
