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PEQUENO TRABALHO PARA VELHOS PALHAÇOS - Nora Prado


O espetáculo Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços que abriu o 19º Porto Verão Alegre no Theatro São Pedro honra a tradição do melhor teatro gaúcho. Texto de Matei Visnièc e direção de Adriane Mottola, o espetáculo é uma bela alegoria que reflete o papel da arte e do artista no mundo contemporâneo. Jogado com grande desenvoltura e propriedade pelos atores, Arlette Cunha, Sandra Dani e Zé Adão Barbosa, num jogo cênico de grande densidade e humor, o espetáculo arrebata a plateia pela sutileza e refinamento estético. Há algo de sublime e patético que exala dos três palhaços: Nicollo, Fillipo e Peppino nos remetem ao seminal Esperando Godot de Samuel Beckett. Propõe a mesma atmosfera misteriosa, o mesmo respeito pelo incógnito produtor que nunca chega, a mesma ansiedade e esperança pelo encontro inalcançável, o mesmo nonsense durante a exaustiva espera.

Aqui, três palhaços se reencontram num lugar inóspito e sombrio para mostrar suas habilidades num suposto teste para velhos palhaços. Todos eles se encontram em fim de carreira e se agarram a nova oportunidade de trabalho divulgada pelo jornal. Todos chegam com seus melhores trajes, levando consigo suas malinhas com seus truques e apetrechos essenciais que, também, revelam o caráter de cada um. Esperam pelos produtores. Aguardam com ansiedade a hora do teste. O primeiro a chegar é Nicollo, interpretado por Arlette Cunha. Faz sua apresentação passando por uma sequência de pequenas gags com o banquinho, as cadeiras e os seus adereços pessoais até se cansar e, finalmente, dormir. Depois chega Fillipo, primorosamente interpretado por Sandra Dani, numa partitura própria de gags que a princípio rivaliza com Nico até se reconhecerem. Mesmo sem saberem exatamente do que se trata, eles depositam grande esperança nessa possibilidade de emprego. Enquanto esperam, relembram de antigos números em diversos circos e companhias por onde trabalharam. Mas tão logo termina a emoção do reencontro entre colegas de profissão, eles se perceberem como concorrentes para a vaga anunciada. A camaradagem inicial dá lugar à rivalidade que aparece sob diferentes nuances e jogos hostis, com artifícios palhacescos muito bem orientados por Jéferson Rachewsky e perfeitamente articulados pela direção, segura, de Adriane. O tempo passa sem que ninguém venha a dar nenhuma satisfação sobre o teste. A disputa pelo lugar na melhor cadeira, assim como as ofensas e críticas mesquinhas, vão mostrando o lado mais sombrio e perverso dos palhaços.

Finalmente aparece Peppino, o mais velho dos três e mestre de ambos nas artes clownescas. Depois da farra inicial pelo inesperado reencontro, eles voltam às ofensas e disputas para provarem quem é o melhor. Numa sucessão de números cômicos, alguns patéticos e absurdos, outros delicados e poéticos, os velhos palhaços se mostram ao mesmo tempo fortes e frágeis, ternos e cruéis, num jogo de poder que aumenta em intensidade e fúria até, finalmente, chegar ao derradeiro extremo.

Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços não é um texto para amadores nem iniciantes. Requer maturidade cênica e percepção das diversas camadas de sentido subjetivo contidas nessa joia do dramaturgo romeno. Sua crítica ao mundo moderno pleno de velocidade e técnica atordoa e embota os nossos sentidos sem deixar mais espaço para a profundidade da arte. O circo, representado na essência do palhaço, encontra sua melhor metáfora para falar da verdadeira arte do encontro do ser humano consigo mesmo. Em meio ao turbilhão de inutilidades criadas pela sociedade de consumo, o ser humano confundiu sua real necessidade entre o “ser” e o “ter” de uma forma assustadora. A ponto de se distanciar vertiginosamente da sua natureza questionadora e transcendente. A brutalidade e falência destes sistemas produziram desigualdade, miséria e cinismo em grande escala. Num tempo onde tudo é descartável e substituível, é mais do que necessário que retomemos as questões fundamentais para o destino da raça humano. Quem somos? Para o que vivemos? No que acreditamos? O que queremos? Como faremos? São questionamentos essenciais para novos paradigmas de coexistência sustentável neste circo de horrores no qual nossa confusa humanidade afunda.

Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços é uma obra relevante para denunciar o vazio existencial que sofremos, mas também para incentivar saídas para esse mal estar da nossa civilização. Um prato cheio para uma diretora experiente e criativa que soube dar sentido e voz a essa angústia. Encontrou no elenco tarimbado e competente a melhor forma de expressar o conteúdo do texto. Arlete, Sandra e Zé adão estão em sua melhor forma e traduzem, harmoniosamente em suas admiráveis composições, o absurdo da condição humana de maneira inesquecível. O esmero com que tudo se alinha para dar unidade formal e estética demonstra competência e conhecimento do grupo sobre o universo teatral.

O cenário de Zoé Degani enfatiza esse deserto moderno como se os palhaços estivessem confinados numa garagem. Os belos figurinos de Daniel Lion contribuem para dar credibilidade aos personagens, assim como as composições musicais de Álvaro Rosacosta criam a ambientação sonora adequada a esta tragicomédia. Um dos pontos altos do espetáculo está na canção para os velhos palhaços onde se revela a síntese lamentável pela qual passamos em nosso país. Um espelho contundente para ver o melhor e o pior de nós mesmos. Parabéns a equipe inteira que realiza, com capricho, esse trabalho e valoriza a trajetória do Stravaganza como uma das grandes companhias de teatro de Porto Alegre!



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